“Para todo problema complexo, existe uma solução simples, elegante e completamente errada” Henry Louis Mencken.
Após a publicação do post da semana passada, recebi alguns comentários, relacionados à segurança da vacina contra a Febre Amarela. Algumas pessoas acreditam que as autoridades sanitárias omitam os casos onde ocorra algum efeito indesejável, após a vacinação. Não tenho nenhum envolvimento, direto ou indireto, com o setor público. Portanto, não posso afirmar nada em nome destes agentes. Mas, sei que o nosso sistema de vigilância epidemiológica é muito eficaz e, como parte desse sistema, temos um sistema de vigilância epidemiológica para efeitos adversos pós vacinação. Nem todas pessoas sabem desse sistema que é o responsável por coletar dados, de forma regular, através de procedimentos padronizados e, assim, acompanhar a incidência de efeitos colaterais que possam ocorrer com todas as vacinas administradas pelo Programa Nacional de Imunizações. Os profissionais de saúde envolvidos em vacinação recebem treinamento e/ou têm acesso aos manuais do Ministério da Saúde que tratam, especificamente, de efeitos adversos de vacinas e a forma de notificá-los. Estou detalhando um pouco mais esse sistema porque acho relevante a informação de que, no Brasil, acompanhamos, de forma sistemática, quaisquer efeitos colaterais de vacinas (não só a de Febre Amarela). Acredito que é pouco provável, nos dias de hoje, com a circulação eletrônica da informação que uma autoridade possa omitir ou ocultar dados, por um longo período de tempo.
Com relação à segurança das vacinas em geral, gostaria de citar alguns fatos:
1- Não sabemos tudo, nunca. O conhecimento é um processo contínuo e o conhecimento científico pressupõe que não se consiga chegar a uma Verdade (com V maiúsculo). O conhecimento científico é, na melhor das hipóteses, a melhor informação disponível, naquele momento. Por esse motivo algumas verdades (com v minúsculo), frequentemente são substituídas por outras (também com v minúsculo). Um exemplo caricato é a história do ovo. Ovo faz bem ou faz mal? Pode comer ovo ou precisamos parar de comer ovo? A cada momento, em função de novos conhecimentos embasados no método científico (que é algo bem complexo e não somente a apresentação de estatísticas), teremos uma verdade.
2- O impacto da vacinação no crescimento da expectativa de vida foi imenso e esta realidade só foi possível através da vacinação sistemática da população exposta. Este é um fato praticamente incontestável. Digo praticamente porque ainda existem pessoas ou grupos que se opõe à vacinação. Não há nenhuma evidência científica que embase esta resistência que, habitualmente, está baseada em argumentos relacionados com crenças (eu acho isso ou eu acho aquilo), crendices (mitos) ou ainda informações já demonstradas como falsas (vacina contra Sarampo produz autismo).
3-As vacinas não são 100% efetivas, e também não estão isentas de oferecerem possíveis riscos para a população. O senso comum é o oposto desta afirmação. Talvez porque seja o mais desejável, pensamos que, uma vez vacinados, estaremos 100% protegidos contra uma determinada doença e que a vacina não pode fazer mal algum (exceto um pouco de dor no local e, talvez, um pouco de febre). Nossa cabeça tem mais facilidade de pensar de forma binária onde ou algo faz bem ou faz mal. Ou protege, ou não protege. No mundo real, as coisas vivas não funcionam de modo binário (exceto computadores). Seres vivos são, por definição, variáveis. Vacinas aplicadas em seres vivos podem proteger a maioria, mas não todos. Podem ter pouquíssimos efeitos colaterais para a maioria, mas não para todos.
4- Nenhuma vacina está totalmente livre de provocar eventos adversos, porém, os riscos de complicações graves causadas pelas vacinas do calendário de imunizações são muito menores do que os das doenças contra as quais elas protegem. Esta é a chave que justifica (ou não) o uso de determinada vacina. É preciso que fique cientificamente demonstrado (usando métodos rigorosos e complexos) que, comparando os riscos da vacinação, com os da doença natural, aqueles (os riscos da vacinação) sejam significativamente menores do que estes (os riscos da doença natural).
Especificamente com relação à vacina contra a Febre Amarela:
1- Mesmo com a possibilidade de eventos adversos graves, incluindo o óbito, a vacina contra a Febre Amarela é o melhor meio de se evitar esta doença que apresenta uma alta taxa de mortalidade (em torno de 50% dos casos morrem) e deve ser utilizada de forma rotineira em áreas endêmicas (onde a Febre Amarela existe de forma contínua) e nas pessoas de áreas não endêmicas que poderiam estar expostas. Essa é a lógica pelo qual, até muito recentemente, pessoas de algumas áreas do Brasil recebiam a vacina contra a Febre Amarela como parte do calendário regular e outras não. Em uma área onde não há o risco de se contrair a doença, o risco de reações adversas da vacina não justifica o seu uso. No entanto, quando uma área ou região que não era de risco de se contrair a doença passa a ser de risco, justifica-se a vacinação porque a equação muda (a doença passa a ser mais “perigosa” do que os efeitos colaterais da vacina).
2- As estatísticas disponíveis para o risco de efeitos colaterais da vacina contra a Febre Amarela não são homogêneas porque dependem de estudos feitos em condições epidemiológicas e metodologias diferentes. Cito alguns números para que tenham uma ideia da frequência com que complicações podem ocorrer.
A pior consequência adversa que pode ocorrer é o óbito provocado pela vacina. As estimativas são de que 0,043 a 2,31 pessoas por um milhão de doses de vacinas, poderão falecer. Traduzindo em porcentagem seria 0,0000043% a 0,00023% das pessoas vacinadas que poderiam vir a falecer. É um número muito baixo, mas não é zero. Portanto, quando comparamos esta porcentagem com a taxa de mortalidade da doença (50% das pessoas podem morrer), verificamos que o risco de óbito pela doença é muito maior do que pela vacinação. Mas, para nós humanos, números são abstrações, e quando temos a notícia de um óbito provocado pela vacina, essa notícia “apaga” a nossa capacidade de pensar de forma abstrata, conceitual ou racional e o medo ou pânico se instalam.
Com relação aos possíveis efeitos colaterais no sistema nervoso central, estima-se que estes podem ocorrer em 1 em 125.000 vacinas aplicadas. O que corresponderia a 0,001 %. As alergias graves (não uma simples urticária ou edema de lábios e olhos), podem ocorrer em 1 em 55.000 vacinas aplicadas, correspondendo a 0,002%.
3- Alergia a ovo e outros componentes da vacina. A vacinação de pessoas com alergia a ovo ou outros componentes da vacina (gelatina, proteína de frango e outros possíveis componentes) deve ser avaliada caso a caso. Não há consenso em como lidar com esses casos, mesmo porque a expressão “alergia a ovo” pode significar desde uma urticária, até um choque anafilático. As pessoas que tenham alergia a ovo devem procurar um médico para que possam ser orientadas e, em função tanto da intensidade da sua reação alérgica, quanto do risco de contrair a doença (uma epidemia, por exemplo), definir qual a melhor estratégia. Do ponto de vista acadêmico, mas com imensa dificuldade de se fazer na prática, um teste com uma dose de vacina diluída poderia ser feito ao mesmo tempo que se faria um controle (geralmente com histamina). Se o teste der negativo a pessoa poderia ser vacinada. Se der positivo, não deveria ser vacinada e poderia tentar um tratamento de dessensibilização. Como podem ver, na prática não é possível se implementar estas ações, principalmente em grande escala.
A mensagem, uma vez mais, é que a vacina contra a Febre Amarela, em uma situação de risco epidêmico, é o melhor meio para se proteger contra esta doença que mata metade das pessoas que adoecem. A vacina não é isenta de riscos (nenhuma vacina ou, por extensão medicamento é isento de riscos), mas, em uma situação epidemiológica como estamos vivendo em várias áreas do Brasil, estes riscos são muito menores do que os da doença natural.
Boa vacinação para todos!