Vamos começar o post usando uma das definições do Dicionário Houaiss para a palavra charlatão: “aquele que, por seus conhecimentos empíricos, se faz passar por médico”. Claro que o Google, essa excelente ferramenta de busca não se faz passar por nada ou ninguém. Comecei com um título provocador, para chamar a atenção para o fato de que nós, usuários do Google, podemos incorrer no erro de atribuir a um conjuntos de dados e informações, a mesma qualidade ou importância de uma consulta médica.
Já escrevi sobre o Google em outro post e recomendo que seja lido em conjunto com este. Naquele, comentei sobre fontes de informações. Neste, vou falar um pouco mais sobre a consulta médica, em si.
Voltando à brincadeira do título, Dr. Google é um charlatão por uma razão muito simples: não é médico! Como é muito erudito e responde a qualquer pergunta com um volume enorme de informações, podemos pensar que possui as respostas para o problema que eu estou pesquisando. Como tentei demonstrar no post já publicado, muitas respostas que aparecem no Google não possuem o menor valor. São opiniões pessoais, sem nenhuma fundamentação científica, muitas vezes obscurantistas, preconceituosas ou carregadas de crenças e mitos. A publicação na internet é livre e qualquer pessoa pode escrever o que quiser, sem que precise comprovar ou, ao menos, assumir alguma responsabilidade sobre o que escreveu. Por esse motivo, é fundamental se desenvolver uma capacidade de filtrar o que é informação de qualidade das que não possuem nenhum valor e só contribuem para confundir e gerar insegurança nas pessoas.
Mas, mesmo considerando as informações de sites confiáveis, que só publicam conteúdo cientificamente comprovado, o Dr. Google não é um bom médico! A medicina é uma prática dirigida ao indivíduo (um dia eu escrevo sobre saúde pública, importantíssima, mas, para o post de hoje, vamos ficar na relação de um médico com um paciente). O indivíduo, por definição é único. Mais do que único, é um único que varia no tempo, de uma forma única. Ficou confuso? Tento explicar, por partes. Que somos únicos, me parece a parte fácil. Temos uma identidade física e emocional que é só nossa. Não existem dois iguais, nem gêmeos. Agora vamos para a parte de que variamos no tempo. A variabilidade é a característica dos seres vivos. Só não variam os objetos inanimados, sem vida. Nossa trajetória, da fecundação à morte, é de variações permanentes. Por isso, o modelo do corpo como uma máquina é falso. Não somos máquinas porque estas, apresentam pouca ou nenhuma variação. Nada em nós é constante ou se repete, apesar de, como humanos, buscarmos padrões e conseguirmos até identificarmos alguns. Mas, se fossemos espetar uns eletrodos no nosso corpo, viríamos que a temperatura, frequência cardíca, pressão arterial, respiração, consumo calórico, atividade cerebral, variam durante o dia. Isso, sem falar no humor, oscilante, imprevisível. E, o que dizer do processo de envelhecimento que é uma outra forma de variação que os seres vivos apresentam? Envelhecer é mudar! Me alonguei um pouco nesse aspecto da variabilidade para poder chegar onde eu queria- nenhum ser humano é uma média ou um parâmetro “normal”. Ainda que o médico precise conhecer médias e parâmetros normais, estes precisam ser “personalizados” para aquela pessoa ou aquele contexto. Assim, a medicina não é uma ciência precisa. Se fosse, o Doutor Google poderia ser um bom médico. Bastaria eu lhe contar algumas coisas e ele procuraria em centenas de bancos de dados e acabaria me dando uma resposta. Isso seria o que chamamos de um excelente algoritmo. Se isso, então aquilo. Se aquilo, então aquilo outro, até que finalmente chegasse a um diagnóstico e tratamento. Mas, o ser humano varia! Por isso a medicina não é uma ciência exata. Na melhor das hipóteses, é uma prática que se baseia em conhecimentos científicos, mas que tem um aspecto de artesanato ou arte, na medida em que exige do médico sensibilidade, criatividade, capacidade de relativizar. Por esse motivo a consulta médica é um ato, até o presente momento, insubstituível. Por melhor que seja a internet, um site, um blog, nada substitui a consulta médica porque esta se baseia em algo que não é possível no mundo virtual: a relação entre duas pessoas, ao vivo, presencial. Desta relação nascem percepções, confiança, empatia, fundamentais para o diagnóstico e encaminhamento de um tratamento. Esse é o lado da arte na medicina. A medicina é ciência com arte. O Doutor Google, na melhor das hipóteses, utilizando os melhores filtros do mundo, poderá, no máximo, nos dar notícias do que a ciência está falando a respeito de um determinado assunto, naquele momento. Jamais será capaz de nos dizer como aquele assunto se relaciona comigo, indivíduo.
Um outro aspecto, pelo qual o Doutor Google é um charlatão é a convicção que tenho de que a lógica da saúde é diferente da lógica da doença. O médico, durante toda sua formação e vida profissional, foi treinado a estudar e desenvolver suas aptidões, voltado para o diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças. Quando o assunto é saúde, a lógica não é a mesma. Para a doença, é fundamental que o conhecimento seja científico. Mas, o conhecimento científico é um pedacinho do conhecimento existente. Para a saúde, esse enorme conhecimento existente, não necessariamente científico, pode ser muito útil e o médico não tem muito conforto com isso. Nós médicos, tendemos querer tornar todo conhecimento em científico. Ao fazermos isso, ficamos sendo os detentores desse saber e podemos criar normas ou regras do que é bom e do que é ruim, para a saúde das pessoas. Ora, há mais de 180 mil anos que o homo sapiens está na terra. Pode ser que não soubéssemos nada a respeito das doenças, atribuindo aos deuses ou humores, suas causas, criando curas que hoje soam como maluquice. Mas, com relação à saúde, certamente fomos acumulando um conhecimento (não científico ) que nos trouxe até nossos dias. Portanto, meu ponto é que saúde não é uma área exclusiva do médico. Pelo contrário, medicalizar a saúde é um perigo porque, como eu disse, não entendemos desse assunto e vamos criar regras. Ao fazermos isso, retiramos das pessoas a segurança que deveriam sentir para cuidar da sua saúde, sem que o médico tenha que opinar sobre tudo, a todo momento. Pode isso, não pode aquilo. Ora, as pessoas sabem o que pode e o que não pode, não precisando de um médico para lhes ensinar nada. Claro que estou exagerando, apenas para provocar vocês que estão lendo este blog a pensarem o quanto nós médicos nos metemos onde não deveríamos: na saúde das pessoas!
Quando uma mãe pergunta ao pediatra se ele acha que ventilador é melhor ou pior do que ar condicionado e o pediatra responde, parece que é uma resposta científica. Não é! Desafio qualquer pediatra do mundo a provar que tenha tido uma única aula sobre ventilador versus ar condicionado! Quando uma mãe pergunta se agora o seu bebê de 7 meses já pode comer brócolis e o pediatra responde que é melhor esperar até os 8 meses, parece que existe uma ciência da nutrição para justificar essa espera até os 8 meses. Não existe! Desafio qualquer pediatra do mundo que tenha tido uma única aula sobre com quantos meses uma criança pode comer brócolis. Acho uma delícia quando pais de bebês com um mês de idade, sentados no consultório, me perguntam: com quantos meses podemos sair de casa com nosso filho? Em geral, fico quieto por uns segundos, na expectativa de que percebam que já estão fora de casa! E aí pegunto se existe uma blindagem invisível entre a casa deles e o consultório! Claro que um bebê não tem necessidades específicas de sair de casa, mas as “regras” que nós médicos impomos, como se fossem ciência, também não fazem o menor sentido. Se fosse assim, as migrações nômades, nunca teriam ocorrido. Imaginem se a cada bebê nascido, as tribos nômades tivessem que parar e esperar 6 meses para voltar a andar!
Portanto, para as questões de doença, Doutor Google não é um bom médico, poque não é médico, não é gente, não consegue acrescentar arte à ciência, para dar conta do indivíduo. Nas questões de saúde, Doutor Google não é um bom médico porque médicos não entendem tanto de saúde quanto as pessoas. Saúde é um conhecimento amplo, vasto, baseado na tradição, valores e algum conhecimento, hoje muito difundido. Nomear o médico o detentor desse saber é “terceirizar” algo que é essencial, aumentando a insegurança das pessoas quando o que precisamos é de um pouco de ousadia e criatividade, principalmente com as crianças.
Vamos usar o Google, sites, blogs (inclusive este), grupos, fóruns, para saber um pouco mais, obter informações, ouvir opiniões. Nunca como um substituto da consulta médica. Vamos à consulta médica, valorizando a relação que se estabelece para questões de doença e conversar sobre prevenção. Mas, no campo da saúde, vamos usar o conhecimento acumulado, nossa sensibilidade e bom senso, tentativa e erro, fugindo de regras e normas, ditadas por profissionais da saúde, cujo objetivo final é o de nos tornarmos donos de um saber (que não nos pertence), medicalizando a vida. Vida é algo muito maior do que uma prescrição médica! A receita está em cada um de nós e não no Doutor Google!
2 comentários em “DOUTOR GOOGLE, CHARLATÃO.”
Amei a materia, sabe sou uma mãe extremamente angustiada daquelas bem paranoicas mesmo. (minha filha teve uma infecção de garganta a 2 meses, e ate agora ainda pesquiso sobre o tema no dr google). O problema e justamente a consulta do dr google não ser pessoal , não ser direcionada a minha pessoa e a minha filha. Tenho um bom pediatra de posto atencioso e dedicado, mas assim q passo pela consulta chego em casa e vou tirar a prova no google, resultado : eu fiquei paranoica. Então mamães de 1 viagem como eu, confiem no seu pediatra e aproveitem( eu tento) esse pequeno serzinho q depende tanto da gente. e vou tentar me lembrar sempre “Doutor Google não é um bom médico, poque não é médico, não é gente, não consegue acrescentar arte à ciência, para dar conta do indivíduo”
Prezada Suelen,
Obrigado por participar do blog. Seu depoimento deu vida ao post do Dr. Google!